Fim do mundo

It’s the end of the world as we know it

no fim do mundo

quase não há gente

os que sobram

não se beijam

não se abraçam, não se tocam

não se amam

já não sabem

não há crianças, nem futuro

ou destino

no fim do mundo

não há casa

nem calor, nem frio

não há sono

nem retiro

no fim do mundo

não há dinheiro

nem alimento

para os pobres

não há ricos

e nada é de ninguém

não há posse

nem dádiva

nem rei

no fim do mundo

ninguém fala

nem ri

nem chora

ninguém sente

ninguém é

ou será

ou se lembra de ter sido

somos sombras

sem memória

meros espectros esquecidos

no fim do mundo

não há melhor

nem pior

nem desigual

todos anseiam apenas

por mais um pouco de ar

o instante seguinte

e cada um luta apenas

por cada qual

no fim do mundo

por entre o vento

rastejamos sós

sobre a terra

gigante, alegre

de luz, de vida e cor

mas já não para nós

Envelhe(S)er

Os anos passam que nem pássaros velozes e ninguém nos prepara para isso. Por muito que gostássemos ou tentássemos, nunca conseguiremos travar ou desacelerar esse voo. Ao contrário, parece que quanto mais avançamos mais rápido se torna – como, quando crianças, pedalamos numa descida muito íngreme e de repente as rodas da bicicleta parecem ganhar vontade própria e não a conseguimos parar. É assim, nessa espécie de vertigem, que vamos somando os dias e as lembranças da nossa vida.

Quanto mais vivemos mais sabemos, e a todos já ocorreu a ideia de que reviver o que ficou para trás, com o que já sabemos hoje, seria um trunfo de sucesso inimaginável. Apesar disso, e cada vez mais, envelhecemos de forma angustiada. Não só porque inevitavelmente teremos menos dias pela frente, mas também, em muito, porque culturalmente parecemos caminhar para um lugar sombrio, solitário ou, não menos mau, condescendente.

Chegar aos 70, 80, 90 devia ser motivo de orgulho pessoal, familiar e social. São efetivamente mais sábias as culturas que veem nos anciãos os chefes supremos do grupo, donde podem provir as maiores aprendizagens para os mais jovens.

Mas nesta nossa sociedade cegueta, os olhos só param no que for rápido, futuro e jovem. Como se há-de então ter paciência para ouvir os mais velhos, aprender com eles, apoiá-los? Para caminhar a seu lado temos que desligar os alarmes para compromisso atrás de compromisso. Temos que compassar os passos pelos seus, a uma velocidade (aparentemente) disparatada, que nos aparece como desperdício de tempo – quando na verdade nós é que atiramos o tempo para o lixo diariamente ao fragmentá-lo em pedacinhos tão pequeninos que acabam por nunca chegar para agarrar o essencial.

Os idosos são capazes de ficar horas só a pensar, ou a tentar pensar. Com os olhos fitos em nada, ou nos carros que passam na estrada. Param em cada pedacinho de memória, ou perdem-se pelo meio dela, mas param. E isso é no mínimo assustador.

Pensar pode mesmo ser perigoso para nós. E se de repente pensamos muito e percebemos que estamos a fazer tudo mal? E que não encontramos forma de reverter isso?

Se pensarmos mesmo muito bem, vamos ver que somos todos umas bestas, que estamos todos ao contrário e que nos empurramos uns aos outros nesta espiral de estupidez. Ai de quem assuma corajosamente que quer parar, que quer viver devagar, que não quer trabalhar tanto, que quer ficar a brincar com os filhos e a vê-los crescer, a ler um livro, a visitar os amigos, a amar os pais… Ai de quem reivindique o seu tempo para ser feliz! O tempo é para correr, suar, gritar, buzinar, enlouquecer, e por fim desmaiar em frente a um monitor, até que volte a tocar o despertador. Para quê? Para ter qualidade de vida!

Ahahahaha – desculpem, mas tive que rir.

E neste contexto, os idosos são… (desculpem a franqueza) chatos. E não ficam bem no facebook, ou no instagram – porque os filtros não lhes colocam dentes ou tiram as fraldas – nem nos deixam trabalhar descansados. E porque precisam de cuidados, porque já não são capazes sozinhos, porque podem cair, porque estão maluquinhos, e porque é para seu bem… vamos lá roubar-lhes a vontade, e até a dignidade, e pensar mas é por eles, que já não pensam muito bem. Tiramos-lhes o cartão bancário, antes de mais nada, para que não se ponham por aí a esturrar a nossa herança mal esturrada. E também, precisam de dinheiro para quê? O carro já não lhes faz falta, e nós precisamos é de trabalhar que afinal não somos ricos. E qual “casinha” qual carapuça, para lá estarem sozinhos? Mais vale é irem para o lar para não nos sobressaltarmos a toda a hora. E ficam todos mais descansados. Todos… menos eles.

A quem já pouco sobrava, e que já só queriam poder deitar a cabeça ao adormecer naquilo que foi seu a vida toda; sentir o aconchego, mesmo que confuso e baralhado, naquilo que lhes cheira a casa – a verdadeiro lar, afinal – ou a família.

Não quero parecer moralista. Felizmente tenho dois pais jovens e muito ativos ainda e não consigo adivinhar o que pode vir a seguir.

Não tenho nada contra os lares (ou contra todos pelo menos, ou os que podem manter o direito a chamar-se assim). Conheço alguns que funcionam muito bem, tenho amigos que são extraordinários diretores de outros e sei que há muita gente realmente dedicada a apoiar e valorizar o envelhecimento ativo e saudável. Mas devíamos mesmo mudar-lhes o nome!

Também tenho um filho. E também estou a envelhecer. E faço tanto por ele, todos os dias! Tantas cedências, tanta luta, tanto sacrifício e amor… Ensino-lhe tanto… Não gostaria um dia de me sentir um estorvo na sua vida, alguém de quem tem que se afastar ou livrar para se sentir mais feliz. Também não poderei fazê-lo aos meus pais. Até ao limite, cumpre-nos respeitá-los. Como pessoas, indivíduos, com um passado de luta também, com vontade ainda também. Roubar-lhes isso é roubar-lhes o seu ser e isso é vergonhoso. Às vezes não há outra solução, dizemos… mas então não os abandonemos. Temos que estar a seu lado como estiveram ao nosso a vida toda, ajudando-os a viver as SUAS vidas.

Todos os idosos são pessoas, que um dia foram iguais a nós, tiveram energia, trabalharam, dançaram, riram, choraram, fizeram amor (muitos ainda fazem, felizmente para eles)…

Como podemos tratá-los depois como bebés? E ir oscilando entre os maus tratos e a condescendência de quem já não lhes reconhece crédito algum, embora os mantenha muito limpinhos e zelados?

O corpo pode já não funcionar bem, ou até mesmo a cabeça, mas todos nós, os sortudos, chegaremos lá assim também. Quem me dera já, apenas aos 42, trepar muros sem ter medo de cair, porque me rebento toda se isso suceder. E ver… quem me dera ver como vi a vida toda. E ouvir. E correr. E saber tudo sobre youtubers para não me faltar assunto (já) com o meu filho.

E se é fácil percebermos quando se diz, ao educar um filho, que o importante é o “ser para bem” da criança, com os nossos pais, com os nossos velhinhos, tem que ser igual. O bem deles tem que estar em primeiro, e não necessariamente apenas o nosso. Porque é das suas vidas que se trata. E temos que gerir o equilíbrio entre o bem deles e o nosso com o mesmo cuidado e sapiência com que eles o fizeram em todos os dias que cuidaram da nossa educação, e com que o fazemos enquanto educamos os nossos filhos.

Afinal, se a empatia não estiver presente de filhos para pais, como pode estar no resto das relações sociais e mundiais?

E para que servirá aos ditos jovens querer viver mais, para que servirá a ciência e a medicina, o aumento da esperança média de vida? Porque prolongamos as nossas vidas, se não nos esforçarmos para construir uma sociedade que esteja preparada para nos querer e acolher até ao fim dos nossos dias? Que nos deixe ser quem fomos, quem somos, até que se nos acabe o tempo de vez?

Deixar de querer ser

Quantas vezes tem a vida que nos desiludir para que se desista de a viver?

E quão grandes têm que ser essas desilusões?

Estas e outras perguntas voltam e revoltam dentro da minha cabeça, ao longo dos anos, a cada vez que penso nos que deixaram de querer ser.  É difícil sair desta espécie de curto-circuito emocional e cognitivo. A ideia, mesmo que meramente hipotética, de deixar de se querer ser… este preferir o nada a si próprio e ao ponto em que se chegou no seu percurso, é para mim uma espécie de non-sense.

Passamos a vida a tentar sobreviver, a tentar prolongarmo-nos no tempo, eternizarmo-nos…  porque na verdade, cá bem por dentro, não existe mundo que não seja o mundo para nós.

Algumas dessas pessoas até parece que viviam demais. Ou que viviam mais intensamente pelo menos. Como se confundissem o que sentiam com o que existia, o que era, com o que queriam que fosse. Algumas parece que até tinham um daqueles corações raros que batem mais do que os outros, que insistem que o mundo pode ser melhor, que as pessoas podem ser mais belas…

E depois deixam de cá estar, porque assim o decidem, assim o escolhem.

E isto continua, e continua, e continua a parecer-nos incompreensível. Como pode afinal ser?

Procuram-se respostas, imaginam-se explicações, e tende a surgir sempre uma que (só) parece aliviar: talvez estivessem doentes.

Doentes de quê? Da cabeça? Do coração? Do sentir?

Ou teriam sido as suas vida que ficaram doentes?

Será que a vida pode às vezes ir deixando um qualquer vírus letal que cresce dentro das pessoas devagar, bem agarrado ao coração e ao amor a si e aos outros, sem que ninguém se dê conta? Talvez esse vírus vá roubando a força na luta contra as mágoas, as desilusões… e vá transformando os dias, todos, um atrás do outro, apenas numa espécie de  batalha, uma guerra sem fim à vista, a menos que nos rendamos.

Talvez fossem fracos apenas, diz-se por vezes…

Sim… não fossem feitos do cimento incorrosível e impenetrável de que a sociedade vai esculpindo os seus homens; talvez teimassem em ter carne e osso, e veias, e coração e quisessem guardar tudo lá dentro, sem largar nada, sem permitir qualquer alteração ou esquecimento.

Talvez as memórias, os outros, o mundo, tenham deixado um rasto demasiado rasgado, talvez tenham dilacerado demasiado o peito destas pessoas sem saberem, sem quererem, ou mesmo sem quererem saber. Talvez elas tenham sido mais permeáveis, mais sensitivas, mais atentas aos pequenos nadas que vão construindo os nossos muros…

É que… todos nos magoamos às vezes! Todos caímos de alturas inimagináveis. Porque é que uns prosseguem e outros não? De quão alto se tem que cair para nos escurecermos assim por dentro? E como é, qual é o momento em que se decide não continuar cá? Em que ainda cá estando aos olhos dos outros, já se apagou tudo dentro de si, já se abandonou o próprio eu e já se cedeu todo o pensamento, todo o coração e toda a vontade ao deixar de ser?

Corajosamente decidir deixar-se completamente de existir. Irreparavelmente, e sem que haja qualquer hipótese póstuma de arrependimento, ou sequer já de pensamento ou sensação.

Deixar-se de ser.

Fazer o exercício verdadeiro, consciente e lento, de imaginar a própria morte, e o que dela resulta; tentar conceber a passagem a absolutamente nada; tentar imaginar que não há sequer passagem alguma, apenas um escurecer perpétuo, o fim absoluto da consciência – da própria -, e a continuação de tudo o que existe, na nossa ausência, parece – nos, aos que continuam a ter vontade de permanecer, insuportável.

Quem já foi anestesiado conseguirá eventualmente apenas imaginar por breves momentos: contagem decrescente (devagar, começando no 10, 9, 8…), apagão no 9, (ou para os mais resistentes no 8, vá) e…

nada… para sempre.

Basicamente, nunca chegar a voltar.

Quem decide partir deverá ter feito este exercício vezes sem conta, e sem que ninguém reparasse. E isso ter-lhe-á aparecido seguro e preferível ao resto.

Acredito que não há retorno para quem já fez realmente o ensaio – o ensaio geral – da sua morte… e já tem a data marcada, o espetáculo todo minuciosamente preparado. Há estreias que, mesmo que se adiem, já não podem deixar de acontecer, porque o espetáculo já existe, já está pronto, pelo menos para o seu criador e elenco. E nada, nunca mais, poderá mudar isso.

Passamos a vida a desejar aos amigos que sejam determinados e bem sucedidos nas suas escolhas, que consigam viver livremente cada um dos seus dias… será que não deveríamos então alegrar-nos também quando escolhem o seu fim? Será que não deveríamos tentar esquecer todas as convenções culturais, emocionais, científicas ou religiosas e aceitar que partir como se deseja e quando se deseja é o derradeiro ato de sucesso e realização pessoal?

É difícil… e continuamos a chorar este tipo de fim.

Mas, na verdade, estaremos sempre irremediavelmente sós no ato de nascer, como no ato de morrer. Ninguém poderá fazê-lo por nós, ou sequer connosco. Podemos ter um colo à nossa espera quando chegamos, ou para nos embalar antes de nos irmos, mas neste palco teremos que estar a solo, sem rede e sem colo. Esses são os momentos dos nossos maiores monólogos e chega a parecer-me justo que possamos ter uma palavra a dizer sobre eles.

Talvez nós, os que todos os dias escolhemos ficar, possamos aprender que esta partida, trágica e sofrida, pode ter sido para eles, enfim, feliz.? E que esta decisão de deixar de ser, da escolha de como e quando interromper a sua presença no mundo, foi talvez a única ou derradeira forma que encontraram de afirmarem vitoriosamente a sua força, a sua coragem e a sua diferença.