Flores para Ana

Flor da Ana, no meu jardim.

Dizem por aí que a minha Ana morreu.

Como se pudesse isso ser.

Ela sempre me chamou My Person, por isso eu teria que sentir se um absurdo desses fosse real.

Como se o mundo sequer pudesse continuar a girar se a Ana não estivesse por cá!

Se fecho os meus olhos e vejo o azul dos seus, rasgados de sorrisos, sempre disponíveis para quem a apanhar por perto…

Se faço silêncio e a ouço rir comigo à gargalhada até nos doer a barriga… Como poderia isso ser?

Encontramos sempre rasgos de piada na vida, mesmo nos momentos mais duros, estranhos, difíceis.

A Anita gosta de pão com manteiga e bebe descafeinado, como eu, quando terminamos de almoçar.

Ela pede sempre sal para as batatas fritas. “Ou é ou não é”, diz ela. Somos gulosas, eu e a Ana, e estamos sempre de dieta – só que não: afinal só de vive uma vez, e quando morrermos vamos deitadas e pronto.

Cozinha bem a minha Ana. Faz aquela comidinha que conforta o coração e traz sempre bolachinhas ou estrelitas na mala para os nossos meninos – não os de hoje, os pequeninos, que levamos pela mão a ver as vaquinhas e as suas crias à maternidade na Epadrv. A Ana tem malas, muitas, giras e grandes. Tão grandes que cabe lá o mundo todo dela, e o dos outros todos que dela precisem.

É tão bonita a minha Anita.

Todas as cabeças a seguem quando passa. Um cabelo incrível, forte, louro e sempre sempre bem cuidado. A emoldurar o seu rosto cheio de sardas de menina reguila –  sim, porque a Ana é levada da breca para a brincadeira – onde brilham os olhos mais azuis que já vi. São daquele azul mar limpo e calmo, que nos traz paz ao coração. Os olhos da Ana são o céu de quem a ama.

Sempre tão cheirosa e sempre tão bem vestida. Nunca o dourado e o rosa me pareceram tão bem e nunca ninguém os casou com tanta elegância.

Tenho uns sapatos que quase nunca calcei, mas quis uns iguais aos dela. Os pés dela não doem nunca, são fortes e resistentes. Os meus não. Nunca conseguirei caminhar como ela. A Ana nunca torce os pés, nem escorrega nos saltos. Está sempre confortável, bonita e elegante. E caminha sempre, sem cair.

A Ana tem um abraço enorme. Que nos rodeia o corpo todo, nos acolhe e diz: repousa aqui, está tudo bem. Mesmo que não a veja durante largos meses, quando os nossos corpos se encontram, sabemos que têm que se abraçar de uma forma só nossa, que tem a intensidade da intimidade dos que se pertencem. A Anita é minha. E eu sou dela. Há partes dela que só eu sei, e minhas que só a ela confiei.

As suas mãos são bonitas e as suas unhas sempre bem pintadas. Às vezes ela bate com as unhas na mesa e quando gesticula as pontas dos dedos parece que se soltam e dançam no ar. E usa pulseiras, daquelas que fazem barulho quando escrevemos. Sempre bonitas as pulseiras da Ana. Uma vez deu-me uma feita por si. Foi uma prenda muito especial.

A Ana ri tanto comigo. E eu com ela. Tem uma gargalhada que me contagia.

Às vezes choramos de rir. E às vezes choramos. Juntas, purgamos as mágoas uma da outra.

Recordo que eu e a Ana somos jovens e passamos os dias juntas. Trabalhamos bem juntas, e somos mais felizes por nos termos. Falamos dos nossos meninos, dos homens ou maridos, dos amores, dos amigos, das férias, da vida e do que dela queremos. Temos ganas de muita coisa ainda.

Depois a Ana e eu já não estamos juntas no trabalho e ficamos mais afastadas, mas continuamos unidas pelo coração. Vivemos vidas que parecem correr em paralelo contínuo, com um padrão parecido no seu curso. Temos ambas corpos parecidos – muitas vezes perguntaram se éramos irmãs, tantas eram as semelhanças por dentro e por fora. Temos ambas corpos esponja. Corpos que absorvem tudo o que os rodeia e que depois gritam, de tão sobrecarregados que ficam. Eu e a Ana agora também falamos dos nossos corpos e das dores. Já não falamos tanto da dieta, mas damos muitos conselhos uma à outra, partilhamos dúvidas, medos e as conquistas que vamos fazendo, as descobertas de alívio que vamos encontrando.  Acho que corpo da Ana dói mais do que o meu, ou pelo menos dói diferente.

Não vejo tanto a Ana como queria, nem ela a mim. Ambas trabalhamos muito. Acho que achamos que é disso que se faz a vida. E quando não trabalhamos, é porque estamos ambas de baixa. E então falamos mais ao telefone: da família, das férias, de filmes e séries que andamos a ver, coisas que andamos a aprender… partilhamos novidades, ora boas, ora más, mas partilhamos. E há sempre tanto que fica por contar.

A Ana sofre. Muito às vezes. Mas prossegue sempre, com uma força invejável. E continua a ter o mesmo sorriso lindo e reconfortante de sempre. Às vezes, anda “toda rebentada” como ela diz, mas ninguém consegue adivinhar, tal é a força que dela emana.

Nos últimos tempos, eu e a Ana descobrimos que não sabemos muito da vida e queremos saber mais. E de nós. E descobrimos que, sem termos combinado, estamos em caminhadas paralelas para a sabedoria, a consciência e a nossa verdadeira essência. Ambas procuramos a cura, a luz e o amor. Usamos caminhos diferentes, mas queremos chegar lá juntas um dia. A Ana tem um dom, desde pequenina parece, que eu não conheço. Um dia ela vai partilhar tudo comigo, que ela prometeu.  

Eu e a Ana também somos diferentes em muita, tanta coisa. E é bonito ser tão amigo de alguém tão diferente de nós. Podemos aprender mais uma com a outra, assim.

A nossa amizade é especial. Ela existe mesmo sem nos vermos, ou falarmos. Ela vive para lá do tempo e do espaço, tem uma dimensão diferente daquela em que acontece o quotidiano.

Ambas nos lembramos bem da primeira vez que nos vimos. Talvez uma mão chegue para contarmos as pessoas de quem guardamos esta lembrança. Quando a vi pela primeira vez, soube imediatamente que aquela pessoa ia entrar na minha vida, e que podia confiar nela. E assim foi. Somos companheiras e confidentes eternas, eu e a Ana. E quando nos encontramos, ela olha para mim, e eu olho para ela, e sabemos. Sabemos em que mó estamos, se precisamos mais de falar, de um abraço ou de silêncio. Sabemos quem é a pessoa à nossa frente, e que estaremos juntas para sempre. 

Por isso, não digam que a minha Ana morreu. Isso seria um grande absurdo.

Porque a minha Ana não tem idade, nem fim, nem precisa de lugar algum para ser quem é. A minha Ana é cheia de vida e luz e tem lugar cativo no meu peito, sussurra ao meu ouvido quando me deito, e dá gargalhadas comigo quando fecho os olhos e chamo por ela. E repete e repete “Amiga, fazes-me tanta falta”. Acho que ela nem imagina a falta que me faz a mim.

Desde que começaram a dizer isso por aí tenho falado com ela vezes sem fim, só para provar que estão enganados, e sinto que ela também fala para mim. Ouço-a dizer “estou aqui, my person”. E a Ana não mente – apesar daqueles seus dentinhos separados da frente – dizem que são mentiroso, não é? – nunca lhe ouvi uma mentira ou meia verdade sequer.

E repito e repito: Anita, minha Aninha, está tudo tolo amiga. Eu sei, eu sei que estarás sempre aqui.

Mas as lágrimas teimosas escorrem-me no rosto. E deixo que caiam, tanto quanto querem e precisam, sem as impedir. E no fim, quando as enxugo, vou continuar a viver, com a minha Aninha dentro de mim.

Sei que é exatamente como ela mais gosta de mim: a fazer coisas giras e criativas.

E por isso, eu ergo-me e prossigo. Estudo os meus livros, abraço os outros amigos, brinco com as palavras, animo os palcos e construo o meu jardim.

Afinal, quero ter muitas flores para lhe dar e novidades para lhe contar da próxima vez que nos abraçarmos.

Se eu fosse árvore

Se eu fosse árvore

Seria palco de brincadeiras sem fim

Nos meus galhos sentariam 

Mil crianças em picnics suspensos

Seria sombra de folhas feita 

Para todos os homens estafados

Deitados a meus pés

E seria colo

De tantos enamorados

Encontrados ou perdidos

Em abraços

Na minha copa esconderia

Alegrias e gargalhadas

Desgostos e choros 

Traquinices e trapalhadas

Se eu fosse árvore

Teria raízes sem fim

Tão ágeis e longas

Que se estenderiam 

Por todos os cantos da terra

Resistentes, seguras e unidas

A todas as árvores do mundo.

Fortes guerreiras

Inquebráveis e eternas.

Comb’arte

Quem sou eu? O que significa ser eu no mundo? Como escapar à mera efemeridade da mulher comum, que provém de uma família comum, com uma vida comum, com um dia a dia comum? Como escapar à morte do banal e eternizar o turbilhão interior que sou?

Onde e como entra a arte, o palco e agora a escrita no quotidiano da mulher que sou (tantas vezes) constrangida a ser?

O teatro sempre me apareceu como uma fuga, controlada e restrita, mas uma fuga. Um ver mais longe, um ser mais autêntica. Um dia fui descrita como uma atriz de engate, que precisava de mergulhar em si e nas suas motivações para se conseguir agarrar a outras personagens. Sempre procurei em mim as peles que visto, mas mais que isso, sempre me procurei nelas. A expressão artística, o momento catártico em que me abandono e me empresto, sempre foi momento de encontro comigo, de procura de entendimento da minha identidade.

Hoje também escrevo. E não sei escrever fora de mim. Penso que ao escrever torno exterior quem sou, apresento-me ao mundo com uma coragem que não encontro no comportamento. De uma forma mais rápida, e clara até, do que no teatro.

É difícil assumirmos que não somos só o casa-trabalho-casa, a busca pela estabilidade financeira, a educação dos filhos, as infindáveis tarefas domésticas, o café aos domingos, as férias uma vez por ano, a relação conjugal, a rede de amigos (tão ténue e frágil)… É difícil assumir que somos mais, que temos um supra olho que busca incessantemente o sublime dos dias, que congela em momentos em que se sorri por dentro, que busca o silêncio e o extraordinário… é difícil falar do turbilhão que sou por dentro, do pensamento hiperativo, da revolta e do grito, da ansiedade, da necessidade de escapar à morte, do amor e do quanto nos (des)constrói, da nostalgia agonizante de ver os filhos ganharem autonomia, do nojo pela mesquinhez e a futilidade, da prisão do dinheiro…

Quando escrevo mostro-me, sem que o faça. As palavras fazem por mim o mesmo que a máscara: protegendo-me, denunciam-me, porque me tornam mais audaz, mais forte, mais interventiva.

A arte retira-me o estado torpe em que o tempo real me encerra.

Mas como escapar a esta prisão quotidiana, que tem no cansaço o carrasco da inibição da arte na minha vida?

Resistindo. A arte para mim é resistência, é perseverança, é superação. É expiação e é exorcismo. É resiliência. É realização – amor.

Esta é uma partilha de pequenas guerras diárias, comigo própria, com os outros e com a sociedade, para assegurar tempo e espaço para a minha expressão mais honesta e verdadeira, para a afirmação de mim, para a consolidação da minha identidade, através da minha expressão artística.

15/03/2019

RIA MINHA

na minha terra há uma ria

inteirinha só para mim

às vezes,

de manhã, bem cedinho

quando tudo está escuro

ainda

no mundo,

ou só dentro do peito,

ela é luz

para o caminho

um espelho

de um céu todo novo

calmaria de prata

patos que seguem

que guiam

e pássaros

que acordam num voo azul

sussurros que parecem

sopro de brisa

com odor a sal

a água preguiça

em jeito de sono

bocejo

eu e ela,

tal e qual

espreguiça-me a vida e

traz a vontade

de uma jornada cheia

no boliço, energia

e um sorriso amigo

mãos entrelaçadas

por um mesmo produto

e correm as horas

no corpo que cansa

e começam os planos

do descanso,

uma ânsia

já bem à tardinha

quase sem notar

lá me cresce a vontade

de à ria voltar

e ela à espera

em traje de noite

enche-se de mil cores

no seu horizonte

deitam-se os bichos

e fecham-se as flores

recolhem-se os barcos

e os homens da rua

acalmam-se as águas

adormece a alegria

mas jura voltar

sob a luz da lua

eu sigo para casa

(mas casa é ali)

e durmo, ou não durmo

mas sonho

com um novo dia

sei que ao acordar

o amanhecer

traz sempre a certeza

desta luz da ria

com chuva ou com sol

cinzenta ou às cores

à ria de Aveiro

não falta magia

Prescrição: ser feliz

Todos aspiramos a uma vida feliz, plena, que nos dê permanentemente a sensação de que tudo está como devia estar, e de que nos sentimos realizados, em harmonia com os outros e com o nosso passado, confiantes no futuro.

E todos falhamos a meta, num ou em vários momentos. Por culpa nossa, das nossas expetativas, dos outros, das circunstâncias, da sorte… haverá sempre alturas em que as lágrimas roubarão o sorriso, e em que a dor, a mágoa, a tristeza tomarão conta de nós. Mas prosseguimos, inevitavelmente. Talvez mais fortes, talvez marcados para sempre. Mas seguimos viagem.

Ninguém espera que o rasto das dores fique para sempre. Escondido, à espera para lembrar do quanto veio para ficar. À espera de doer uma, e outra e outra vez. Geralmente, pode andar anos a deixar apenas pequenos alertas, ora aqui, ora acolá, até que vai ganhando terreno e de repente toma tudo de assalto e açambarca todo o corpo. É nessa altura que habitualmente ganha um nome.

Os teus dias passados menos felizes, as perdas, as tuas lágrimas, os teus medos, ansiedades, os dias de stress… tudo reunido num só nome. Finalmente. Fibromialgia.

E por mais que não queiras ser mais uma das pessoas a falar do assunto, por mais que não queiras entrar no que os que não a sabem apelidam de moda médica, a forma como os teus dias são regidos por ela, pelas suas rasteiras, obriga-te a parar, a justificar e a sacar do seu nome para falares de ti. Do quão cansada estás. Do quanto não és capaz. Sim, já foste, de tudo, de tanto, mas hoje não és. Do quanto te custa, andar, sentar, que hoje não consegues dançar, brincar. Que ainda queres trabalhar, conviver, criar… mas tens que inventar formas diferentes de o fazer.

Hoje precisas de parar. Dormir. De noite o sono não veio, e nem percebes porquê. Que agora é preciso silêncio, tens a cabeça a latejar. Que te falem baixinho, devagar. Que te amem, que se amem e que o digam. Os ombros, pescoço e costas não parecem teus, pesam mais do que consegues segurar.

E tens que fazer exercício. Mesmo que doa. Para que não doa. E mesmo assim pareces mais gorda.

Que não consegues trabalhar. Mas tens. Que o que ganhas é curto, porque precisas das consultas, tens de voltar à farmácia.

Que precisas de faltar, que tens mais um tratamento. Que as massagens não são só para relaxar, afinal. Que as há de fazer chorar. De dor, e gratidão pelo alívio que te dão.

Que queres estar com os amigos. Mas cedo. Tem que ser cedo, está bem? Porque ficas exausta, porque tens que descansar. Não, não podes beber. E afinal não, não podes ficar… É da medicação! Porque tomo. Esqueci.

Que desculpem, não lembrei. Não lembro. Há palavras que não sei. Que não saem.

Mas até tens dias bons. Em que só dói um pouquinho. E hoje queres passear e pular e partir, para longe daqui, para longe de ti. Mas hoje não podes ir. Que te deixem, por favor!

Amanhã? Não sei. Já não sei, nunca sei.

Mas sorris. É o que resta, não é? Insistir e sorrir, a cada oportunidade. E calar, habituar.

O tempo corre, a vida urge e esta é tua, a única que tens. Abraçar, forte, forte, para curar os ossos, afagar o coração. E olhar para o sol até deixar de ver, cheirar a terra, o ar do mar, mergulhar a água fria, e o calor que aconchega.

E mais os comprimidos, o exercício, as terapias – que resultariam se diárias, e tu rica…

E eis que o médico diz: Ser feliz. O remédio é ser feliz. Fazer o que mais se gosta. Estar com quem mais se ama. Sair, divertir, relevar… Aceitar, agradecer, perdoar. Jamais discutir, azedar, agredir. Fugir. Não sofrer.

E tu pensas: ora, e não é que parece fácil? Mas doutor, e como se faz? Como manter esse estado de harmonia e alegria interior e não nos deixarmos afetar quando tudo se desequilibra ao nosso redor?

Não podiam ter dito logo, mais cedo, ao nascer? Podiam ter-me avisado… dos dias, dos outros, do mundo. Se eu soubesse, sim, talvez tivesse largado, investido ou esquecido.

E sei, sei que teria levado tudo mais devagarinho. Ou então quem sabe partido, antes de tanta vida ter chegado.

Dos lábios vermelhos

Um dia comprei um batom vermelho. Acho que tinha vontade de me sentir uma daquelas mulheres fatais, sempre impecáveis e glamorosas… E senti. Por escassos minutos.

O meu filho, com uns 5 anos, largou-me a mão no supermercado e dizia repetidamente: tira isso mamã. Outra pequenina houve que achou tão estranho e tão fora de mim que chamou àquela diferente a “Aneia do Bapom”. Ficou até hoje a alcunha, tal foi o trauma dela.

Tenho ali o “bapom”… quase novo.

Percebi que não era para mim. Esquecia-me que o tinha, borratava-me toda e ficava com um aspeto ainda menos impecável do que sem ele. Dava muito trabalho na verdade.

E por isso não o pus hoje, quando todas as mulheres (e homens e gatos até) decidiram pô-lo. Mas gosto de ver. Acho bonito.

Mas eu gosto é de estar assim: de cara lavada, para poder esfregar os olhos, o nariz, os lábios sempre que tenho vontade. Sim, sofro mais com o covid e as máscaras do que com o baton, admito!

Agora tenho cabelos brancos. Muitos na verdade. E ainda por cima à frente. Depois de muito tempo a tentar escondê-los, decidi não me incomodar tanto. Acho que ainda se pode ser (mais) bonita com rugas e cabelos brancos.

Há quem goste, há quem não goste… Há quem diga que me faz mais velha (ou na verdade com a idade que tenho) e quem diga que adora ver-me envelhecer devagarinho ao seu lado.

Uso as unhas pintadas, smepre que posso e tenho tempo. Gosto. Devia ter nascido de unhas pintadas, porque é como as minhas mãos se sentem mais capazes e menos doridas. A minha mãe não gosta que use o vermelho. No tempo dela tinham uma conotação pouco digna. O que ela não sabe é que ainda é “o tempo dela” e que a “conotação” é na verdade apenas preconceito.

Mas, na verdade, não me interessa o que pensam, o que dizem. Porque só posso obedecer à minha verdade, ao que me fica bem (por dentro), ao que afirma o meu direito a ser quem sou, e como bem me apetecer.

No meu corpo mando eu. E mais ninguém.

O meu aspeto, faz parte de mim, identifica-me, mas não me define. Define-me sim a minha maneira de ser, de pensar e de agir.

E só quem não percebe o milagre que é a originalidade de cada um, quem carece ele próprio de humanidade e integridade, é que pode tentar atacar o outro pelo seu exterior.

Sou mulher, somos orgulhosamente mulheres. De batom, vermelho, azul, amarelo… ou de caras lavadas… e valemos pela força, pela coragem, pela luta, a persistência e a esperança de um dia chegarmos, todas, em todo o mundo, a ver reconhecida a igualdade – não por fora, mas dentro da cabeça de todos os seres humanos.

Ah e… o porco só não usa batom, porque teria muitos lábios para pintar. É que o porco não tem uma cara. Tem muitas… ou melhor, muitos focinhos.

Agora vá, deixemos de lhe dar tanta importância. O que ele quer é atenção e estamos todos a fazer-lhe um enorme favor. Falando mal ou bem, vamos falando e ele vai alargando a sua pocilga.

Beijos. Vermelhos 😉

(texto a propósito do movimento #vermelhoabelem de apoio a Marisa Matias, após ter sido objeto de comentário desagradáveis e misóginos por parte de André Ventura, durante o período de campanha eleitoral para as presidenciais 2021

ser mãe

ser mãe é amor

um amor diferente

que não se explica

justifica ou entende

um amor

explosivo

pleno

dilacerante

que nos rasga o corpo

para todo o sempre

ser mãe é ser vida

mesmo após o fim

é sermos quem somos

e termos o pulso

fora de nós

respirarmos o ar

com o peito do outro

doer-nos mais fundo

as mágoas alheias

e sermos felizes só porque sorri

ser mãe é dor

de o saber partir

todos os dias

um pouco mais

para fora de mim

para perto de si

ser mãe é escolher

nunca mais ser só eu

e ter o ventre ligado

para sempre

ao sangue

que pulsa no corpo que é teu

ser mãe é memória

fora da mente

é o primeiro cheiro

entranhado

consolo

para sempre

ser mãe é ser eu

só para seres tu

lutar, chorar e sofrer

sorrir, brincar e crescer

é ser pequenina

e nada saber

do que todos dizem que deve ser

ser mãe

é caminhar

sempre a aprender

sempre a tentar

e a reerguer

mesmo com medo de falhar

mas não desistir

e continuar

e prosseguir

para que um dia

mesmo sem mim

possas vir a ser

a melhor e mais bela

versão de ti

uma caminhada incrível

Abraço

Abraça-me.

Só hoje.

Só um bocadinho.

Mesmo sem apertar muito.

Talvez não se note tanto

se o fizermos devagarinho.

Abraçar é dizer que te quero

Sempre coladinho a mim.

É mais que gostar de ti

assim como se diz com a boca

ou com os olhos até.

É dizer que me faltas

quando não estás

que não sou sem ti

que desejo

que nunca te vás.

Mas é dizê-lo com o corpo

Com os poros

Com o cheiro

e o calor

Que libertamos ao ser.

Que emoção a de um abraço!

Caminhar um para o outro

E num impulso

Sem pensar sequer

Entrelaçar braços

encaixar feitios

num instinto, num impulso.

E apertar.

Segurarmo-nos mais um pouco

um no outro

sem qualquer espaço vazio

até reacender a certeza

de que não nos queremos largar.

Abraça-me.

Só hoje.

Sinto que não corro perigo.

E nada me fará pior

Do que aguentar tantos

dias vazios

a sufocar de saudade.

Sinto que estou por um fio.

Sem rumo

sem brilho

sem a magia que sinto

em cada momento contigo.

Abraça-me.

Suave. Apertado.

Tanto faz.

Só hoje.

Abraça-me.

da saudade do abraço em tempos de confinamento

É sexta feira…

Qual é a coisa qual é ela que quanto mais contamos menos temos?

Uma sexta feira qualquer.

Toca o despertador. Já? Ainda tenho tanto sono! Pf, só mais 5 minutos. Afinal só entro às 09h00 e ainda são 07h00. Enquanto penso e não penso, já sonho outra vez. Toca de novo.

Já perdi 10 minutos e sei que me irão faltar daqui a pouco. Beijo o meu homem, que sairá antes de mim, mas por agora ainda fica ali. Salto da cama, frio de rachar. Enfio robe para aguentar.

Quarto do pequeno, correr devagarinho o estore. E também devagarinho, como se fora do tempo, beijinhos e festinhas até ele acordar. Reparo que está grande, cresceu a correr, mas consigo ainda ver aquele recém nascido por quem me apaixonei à primeira vista. Que doce momento! Mais 5 minutos se foram, mas quanto bem fizeram por mim e por este meu dia enorme que aí vem.

Roupa do pequeno na cadeira, corro para a cozinha: café a fazer, pão a descongelar, água a ferver para levar chá, preparo a fruta. O pão descongelado salta para a torradeira. Pego nas sobras do dia anterior: preparo a marmita – tupperwares: a lasanha, a salada, a sopa. Iogurte, bolachas e fruta. Relógio de novo: 07:30.

Café está pronto. Leite do miúdo, torradas prontas – anda comer filhote! Sentar. “O pequeno almoço merece que te sentes, vá lá!” 07:40. Ainda dá tempo. Mais 5 minutos para comer. Saborear o café com leite, a torrada… será sempre a melhor refeição do dia.

Quarto: 

_Porque raio nunca preparo a minha roupa no dia anterior?

_Sei lá o que me vai apetecer vestir!

Como se isso me interessasse muito na verdade. Quem me dera fato treino, robe e pantufas todos os dias. O meu homem já vai. Levantou, vestiu e saiu. Porque e como é tão fácil e rápido para ele afinal?

Corro o resto do estore do quarto e rezo para o vizinho de baixo não me dizer bom dia com insultos e ameaças de morte por sms porque o acordei antes das 08h30.

07:50 – já nada cedo. Escovar os dentes no banho para ganhar o tempo da água a aquecer. O intestino dá sinal.

_Desculpa, mas vais ter que esperar. Mais logo arranjo um tempinho. 

_Bolas, este cabelo não está em condições. Isso implica pelo menos mais 5 minutos de cuidados.

08h10 – Vestida. Quase quase a sair. Estás pronto filho? Abro o estore da sala – as plantas não podem ficar sem luz o dia todo.

Ai, falta o lanche dele! Cozinha de novo: iogurte, fruta, bolachas. Água. Feito. Espera, logo tem treino, e eu ensaio, já não o vejo antes das 22h00.

_Falta o saco do treino, filho!

Devia ser ele a fazer, eu sei, eu sei, calem-se todos mas é! Não dá tempo, faço eu.

_E tens música, tens que levar o instrumento também, que ainda tenho que ir deixar a casa do pai.

_Já lavaste os dentes? E a cara? Lava os olhos como deve ser! E vai-te calçar.

Ainda tenho que resolver o final do dia. Com quem ficará ele? Quem vai levar, buscar ao treino?

Mochilas às costas. Tanta coisa… parece que vamos viajar todos os dias: um acordeão, saco do treino, mochila dele mais pesada que todo o resto junto, a minha mala, o saco da marmita…

Tudo ok? Espera, falta o chá…  Cozinha… E o jantar? Esqueci de pensar no jantar. O meu, e o dele. Vamos lá. Penso depois. Tardíssimo. 08h20. Ele entra às 08h30.

Tiramos o carro e trânsito, claro está! Chegamos à escola. Não se vê ninguém. Greve! _Greve?! E agora?

IUPI, grita ele.

_Liga à avó, depressa. Quem me dera fazer greve à correria também! Casa do pai, largar acordeão.  
Casa da avó. Toco à campainha.

_Corre filhote, para eu não chegar atrasada. Os sacos, tira os sacos todos. Mais logo ligo para te dar os recados.

Beijinho, amo-te tanto! Até logo – tão tarde será! – Tem um bom dia.

A mãe, a santa de todas as horas: por favor, levas o menino ao treino? 

Respiro fundo. Sinto as pernas agora. Doridas, cansadas. A cabeça dá sinal de que virá enxaqueca. Hoje não posso, hoje não dá, enfio um benuron para evitar que se instale.

Ok. Correr para o emprego.

_Não, espera, tens que parar na farmácia! Acabou o antidepressivo! E tenho mesmo que o tomar, ou não vou aguentar. 08:40. Tenho que chegar antes das 09h00. O ponto não perdoa. Atraso-me, e tenho que ficar mais meia hora… Hoje não posso, não tenho esse tempo.

Entro na farmácia. Que ar terei para a farmacêutica pedir à outra senhora para me dar a vez? Obrigada, 2 minutos foi suficiente.

Merda… as natas! Hoje sou eu a levar os pastéis de natas para o escritório. Páro na pastelaria, esbaforida na certa. Quantas natas são mesmo? Sei lá eu quantas são, levo umas 12 e se sobrar mais fica e como a dobrar.

Voar, furar entre os carros. Engulo o antidepressivo pelo caminho. 

De que cor estava o semáforo mesmo?

Homem que mordeu o cão, abençoado sejas Markl pelas gargalhadas curtas que me arrancas!

Ligar ao padrinho: 

_O afilhado queria ficar aí depois do treino, até eu chegar do ensaio. Pode ser? E dão-lhe jantar? Obrigada, muito obrigada vos fico. Problema resolvido.

08h55. 5 minutos para as 09h00 e uns 10 de caminho.Voo. Cheguei. 09h03. À porta o patrão, aponta o relógio. Resmungo um pouco entre dentes, o que é que ele quer, não consegui melhor…

Pouso na cadeira, em transe, exausta. O dia vai começar.

Não fui nem irei treinar, não fiz nem farei yoga, nem sequer sei o que vou jantar.

Sei que quando chegar, a casa terá todas as marcas da azáfama matinal. E o corpo as mazelas de 5 dias corridos. É sexta feira, devia sair, dançar e pular. Mas tudo o que quero é que chegue ao fim, para eu poder parar, dormir… finalmente descansar.

Morrer e ficar

As pessoas morrem.
As pobres, as ricas,
os ninguéns
e os que mudaram o mundo.
Todos.
E não consigo entender como.
Como sucede isso de nos desligarmos?
Todo este mundo que somos,
tão grande, complexo, importante…
Todas estas memórias, afetos,
sonhos e projetos?
Desliga-se tudo isto,
como se nunca tivesse sido?
E para onde vai?
Acredito, aprendi a acreditar,
que para lado nenhum.
Simplesmente puf,
desaparece quem somos
quem fomos
quem ainda queríamos ser.
Depois parece-me
que pouco ou nada importará
se ainda se lembram de nós
se ainda falam, se sentem,
se ainda nos amam
Ou se sofrem por nós.
Nada mudará para quem foi,
nada fará voltar
quem já não é ninguém.
Mas se não se lembrar quem morreu
se não faltar
se não doer
a ausência do seu eu,
é porque na verdade
pouco importou
que cá estivesse
mesmo enquanto viveu.
Antes de ser nada
quero ser tudo ainda.
amar, sorrir, abraçar
correr, dançar…
ser um pouco louca em cada dia.
Quero mimimi
E quero nhónhónhó
Quero dormitar, anhar,
Quero os amigos
E com eles quero forró.
Saborear os meus bocadinhos preferidos.
Quero o meu filho
quero o meu homem
e os meus pais sempre comigo.
Quero o quentinho
a lareira e o meu ninho,
e o mundo inteiro ainda palmilhar.
Jardins, montanhas, palcos...
muito ainda quero pisar.
Quero o meu público e os seus aplausos.
Quero que lembrem
Que fui gente
Que pensei, que ri, que senti
Que chorei.
Acima de tudo que não esqueçam
que um dia também estive por aqui.