Dizem por aí que a minha Ana morreu.
Como se pudesse isso ser.
Ela sempre me chamou My Person, por isso eu teria que sentir se um absurdo desses fosse real.
Como se o mundo sequer pudesse continuar a girar se a Ana não estivesse por cá!
Se fecho os meus olhos e vejo o azul dos seus, rasgados de sorrisos, sempre disponíveis para quem a apanhar por perto…
Se faço silêncio e a ouço rir comigo à gargalhada até nos doer a barriga… Como poderia isso ser?
Encontramos sempre rasgos de piada na vida, mesmo nos momentos mais duros, estranhos, difíceis.
A Anita gosta de pão com manteiga e bebe descafeinado, como eu, quando terminamos de almoçar.
Ela pede sempre sal para as batatas fritas. “Ou é ou não é”, diz ela. Somos gulosas, eu e a Ana, e estamos sempre de dieta – só que não: afinal só de vive uma vez, e quando morrermos vamos deitadas e pronto.
Cozinha bem a minha Ana. Faz aquela comidinha que conforta o coração e traz sempre bolachinhas ou estrelitas na mala para os nossos meninos – não os de hoje, os pequeninos, que levamos pela mão a ver as vaquinhas e as suas crias à maternidade na Epadrv. A Ana tem malas, muitas, giras e grandes. Tão grandes que cabe lá o mundo todo dela, e o dos outros todos que dela precisem.
É tão bonita a minha Anita.
Todas as cabeças a seguem quando passa. Um cabelo incrível, forte, louro e sempre sempre bem cuidado. A emoldurar o seu rosto cheio de sardas de menina reguila – sim, porque a Ana é levada da breca para a brincadeira – onde brilham os olhos mais azuis que já vi. São daquele azul mar limpo e calmo, que nos traz paz ao coração. Os olhos da Ana são o céu de quem a ama.
Sempre tão cheirosa e sempre tão bem vestida. Nunca o dourado e o rosa me pareceram tão bem e nunca ninguém os casou com tanta elegância.
Tenho uns sapatos que quase nunca calcei, mas quis uns iguais aos dela. Os pés dela não doem nunca, são fortes e resistentes. Os meus não. Nunca conseguirei caminhar como ela. A Ana nunca torce os pés, nem escorrega nos saltos. Está sempre confortável, bonita e elegante. E caminha sempre, sem cair.
A Ana tem um abraço enorme. Que nos rodeia o corpo todo, nos acolhe e diz: repousa aqui, está tudo bem. Mesmo que não a veja durante largos meses, quando os nossos corpos se encontram, sabemos que têm que se abraçar de uma forma só nossa, que tem a intensidade da intimidade dos que se pertencem. A Anita é minha. E eu sou dela. Há partes dela que só eu sei, e minhas que só a ela confiei.
As suas mãos são bonitas e as suas unhas sempre bem pintadas. Às vezes ela bate com as unhas na mesa e quando gesticula as pontas dos dedos parece que se soltam e dançam no ar. E usa pulseiras, daquelas que fazem barulho quando escrevemos. Sempre bonitas as pulseiras da Ana. Uma vez deu-me uma feita por si. Foi uma prenda muito especial.
A Ana ri tanto comigo. E eu com ela. Tem uma gargalhada que me contagia.
Às vezes choramos de rir. E às vezes choramos. Juntas, purgamos as mágoas uma da outra.
Recordo que eu e a Ana somos jovens e passamos os dias juntas. Trabalhamos bem juntas, e somos mais felizes por nos termos. Falamos dos nossos meninos, dos homens ou maridos, dos amores, dos amigos, das férias, da vida e do que dela queremos. Temos ganas de muita coisa ainda.
Depois a Ana e eu já não estamos juntas no trabalho e ficamos mais afastadas, mas continuamos unidas pelo coração. Vivemos vidas que parecem correr em paralelo contínuo, com um padrão parecido no seu curso. Temos ambas corpos parecidos – muitas vezes perguntaram se éramos irmãs, tantas eram as semelhanças por dentro e por fora. Temos ambas corpos esponja. Corpos que absorvem tudo o que os rodeia e que depois gritam, de tão sobrecarregados que ficam. Eu e a Ana agora também falamos dos nossos corpos e das dores. Já não falamos tanto da dieta, mas damos muitos conselhos uma à outra, partilhamos dúvidas, medos e as conquistas que vamos fazendo, as descobertas de alívio que vamos encontrando. Acho que corpo da Ana dói mais do que o meu, ou pelo menos dói diferente.
Não vejo tanto a Ana como queria, nem ela a mim. Ambas trabalhamos muito. Acho que achamos que é disso que se faz a vida. E quando não trabalhamos, é porque estamos ambas de baixa. E então falamos mais ao telefone: da família, das férias, de filmes e séries que andamos a ver, coisas que andamos a aprender… partilhamos novidades, ora boas, ora más, mas partilhamos. E há sempre tanto que fica por contar.
A Ana sofre. Muito às vezes. Mas prossegue sempre, com uma força invejável. E continua a ter o mesmo sorriso lindo e reconfortante de sempre. Às vezes, anda “toda rebentada” como ela diz, mas ninguém consegue adivinhar, tal é a força que dela emana.
Nos últimos tempos, eu e a Ana descobrimos que não sabemos muito da vida e queremos saber mais. E de nós. E descobrimos que, sem termos combinado, estamos em caminhadas paralelas para a sabedoria, a consciência e a nossa verdadeira essência. Ambas procuramos a cura, a luz e o amor. Usamos caminhos diferentes, mas queremos chegar lá juntas um dia. A Ana tem um dom, desde pequenina parece, que eu não conheço. Um dia ela vai partilhar tudo comigo, que ela prometeu.
Eu e a Ana também somos diferentes em muita, tanta coisa. E é bonito ser tão amigo de alguém tão diferente de nós. Podemos aprender mais uma com a outra, assim.
A nossa amizade é especial. Ela existe mesmo sem nos vermos, ou falarmos. Ela vive para lá do tempo e do espaço, tem uma dimensão diferente daquela em que acontece o quotidiano.
Ambas nos lembramos bem da primeira vez que nos vimos. Talvez uma mão chegue para contarmos as pessoas de quem guardamos esta lembrança. Quando a vi pela primeira vez, soube imediatamente que aquela pessoa ia entrar na minha vida, e que podia confiar nela. E assim foi. Somos companheiras e confidentes eternas, eu e a Ana. E quando nos encontramos, ela olha para mim, e eu olho para ela, e sabemos. Sabemos em que mó estamos, se precisamos mais de falar, de um abraço ou de silêncio. Sabemos quem é a pessoa à nossa frente, e que estaremos juntas para sempre.
Por isso, não digam que a minha Ana morreu. Isso seria um grande absurdo.
Porque a minha Ana não tem idade, nem fim, nem precisa de lugar algum para ser quem é. A minha Ana é cheia de vida e luz e tem lugar cativo no meu peito, sussurra ao meu ouvido quando me deito, e dá gargalhadas comigo quando fecho os olhos e chamo por ela. E repete e repete “Amiga, fazes-me tanta falta”. Acho que ela nem imagina a falta que me faz a mim.
Desde que começaram a dizer isso por aí tenho falado com ela vezes sem fim, só para provar que estão enganados, e sinto que ela também fala para mim. Ouço-a dizer “estou aqui, my person”. E a Ana não mente – apesar daqueles seus dentinhos separados da frente – dizem que são mentiroso, não é? – nunca lhe ouvi uma mentira ou meia verdade sequer.
E repito e repito: Anita, minha Aninha, está tudo tolo amiga. Eu sei, eu sei que estarás sempre aqui.
Mas as lágrimas teimosas escorrem-me no rosto. E deixo que caiam, tanto quanto querem e precisam, sem as impedir. E no fim, quando as enxugo, vou continuar a viver, com a minha Aninha dentro de mim.
Sei que é exatamente como ela mais gosta de mim: a fazer coisas giras e criativas.
E por isso, eu ergo-me e prossigo. Estudo os meus livros, abraço os outros amigos, brinco com as palavras, animo os palcos e construo o meu jardim.
Afinal, quero ter muitas flores para lhe dar e novidades para lhe contar da próxima vez que nos abraçarmos.