Um dia ouvi, pelas palavras de Anaxágoras, que toda a semente carrega em si tudo o que o seu ser há-de vir a ser. Que as sementes são eternas, imutáveis, e sábias e que há tantas sementes quantas coisas existem, o que faz de cada uma absolutamente única e mágica. São a centelha, fulgurosa, ainda que fugaz, do que há-de chegar.
Um dia descobri que essa centelha – a que é humana, pelo menos – já é até mesmo embrião do amor que no futuro espalhará dentro dos outros -, mesmo que nem todos o possam reconhecer ainda ou antecipar. Uma vez germinada a semente, nunca mais o solo ficará igual, porque fica aquela luz de presença a brilhar por ali, uma espécie de eco ao longo dos tempos, permanente. Mesmo que falhe o seu crescimento, mesmo que a força que traz não seja suficiente, aquilo que ela toca, é tocado por ela, para sempre. E há toques que se colam a nós e nunca mais nos largam.
Assim são os filhos que não vieram. As sementes que pousaram em ventres que, por muito que até fossem pêra com forma de coração, por muito que quisessem, se esforçassem, ou até crescessem, não conseguiram fazer com que vingassem.
Sempre achei piada a este termo: vingassem. Como se sobreviver, existir apenas até, fosse uma qualquer vingança planeada contra o azar ou o infortúnio, que faz de nós guerreiros, gladiadores ou She-Ras na arena da vida.
Não, viver não pode ser só coincidência. Magoa demais que assim seja…
Ou afinal, talvez possa. E daí surja a tal vingança: do medo ou raiva por a sorte nos preterir, nos esquecer e nos calhar a nós a carta malfadada que ninguém quer.
Os filhos são sementes que espalhamos pelo mundo.
E as que não chegam a enfrentá-lo, ao mundo, não são menos sementes por isso. E podem chegar a ser enormes e poderosos, esses filhos, pelo menos para a dona do ventre que para eles foi tudo.
Um dia, olharam-me nos olhos, turvos, e disseram-me, com um olhar espelho de dor: “assim que sabemos, nasce um amorzinho dentro de nós, não é?”. Fiquei muda. E nunca mais deixei de sentir esta frase cá dentro. A pessoa nem era ninguém, ou quase ninguém, já nem se lembrará de mim, da frase, ou da dor, mas a frase trazia o poder de uma empatia que não sentiria em mais nenhuma.
Essa semente apresenta-se ao coração, primeiro que à cabeça. Há o brilho da centelha a percorrer-nos as veias, a espalhar a intuição, que o pensamento nem reconhece, mas que vem de um amor anónimo que se sente.
Assim que sabemos, ou mesmo antes de sabermos… o amor. E não é só amor à promessa, da antecipação e da ânsia do que sucederá depois. É já uma entrega, absoluta e avassaladora a cada instante partilhado a dois. É amar o que já é, mesmo quando parece ainda nada ser, amar sem ver, sem ouvir,sem receber. Amor a darmo-nos, todas, a tempo inteiro. Despojarmo-nos do nosso corpo, entregá-lo à semente e guardar por toda a vida a alegria dessa entrega.
É um amor condenado à dor, mas nunca a morrer. Quem teve um filho que não chegou a vir, carrega-o dentro de si até ao fim.
Mesmo que a semente se vá, já deixou a sua luz a brilhar cá dentro. Nunca mais ninguém a verá, nunca ninguém saberá que nada a levou ou levará do ventre de quem quis ser a mãe e trazê-la ao mundo.
Mesmo que o ventre se vá, a centelha continuará a faiscar, a prometer ser e, em a mãe deixando, a viver.
Tenho filhos destes dentro de mim. Promessas que fui fazendo ao mundo, a mim, e aos outros. Amorzinhos pequeninos, feitos apenas de sensações que me trespassaram de dentro para fora, trajetos futuros que foram só imaginados e perduraram. E tenho um filho dos outros, um rei, um mágico a quem ensinei a magia do querer, a quem repito que se imaginarmos muito, com muita força e vontade, as coisas que sonhamos existem, e chegam a ser.
E é assim mesmo… se imaginarmos muito as sementes resistem.
Pomos-lhes fitinhas no cabelo pela manhã, colamo-las ao nosso peito e levamo-las a passear. Partilhamos o primeiro sorriso, o primeiro dentinho, e ouvimos mamã. Afundamos os nossos olhos nos delas e agarramos com uma mão os seus pezinhos inteiros. E entrelaçamos os seus dedos nos dedos dos filhos que vingaram e são, e explode-nos o peito por dentro porque a centelha vira fogo, chama… lareira que aquece, conforta e nos prova que amor é amor e, que em sendo verdadeiro, é para sempre.
E depois, tomamo-las no colo, cantamos-lhes ao ouvido baixinho e voltam a adormecer. Até um dia, num qualquer dia, um sonho as volte a trazer e lhes voltemos a entregar o coração por um momento. Por aquela paixão pequenina, com tanto de luz como de dor, que ficou como um eco baixinho.
À minha até dou nome às vezes e escrevo-lhe cartas sem fim, que começam e terminam, num loop de emoção: Para a Íris… para a minha Íris, com amor.