Espera

espero

quieta em silêncio

que voltes

que acenes

e me acordes

desta dormência

incrédula

de que nunca mais seremos

nós

espero

um sinal

de mentira

ou engano

que me leve do peito

sofrimento tamanho

espero

que percebas

e apagues

que te arrependas

como por magia

regresses

para a vida futura

que construímos um dia

espero

que o tempo me leve

de novo lá trás

ao instante perfeito

em que cruzámos olhares

e sustemos o ar

que nos mostre

e ensine

que mesmo no escuro

é possível curar

espero

acalmar o meu peito

respirar

ser capaz de aceitar

e ver o tanto que fomos

o tanto que sou

e que veio de ti

sem chorar

espero

que se honre a promessa

de que morres por mim

e te salve a vontade

de nem noutra vida

vivermos assim

espero

que regresse

ao meu coração

a alegria, a loucura

e a imensa ternura

da nossa paixão

espero

aprender

a viver deste jeito

e tirar desta espera

e silêncio

uma calma

que ensine

que feliz

é quem possa dizer

que um dia

teve dentro do peito

um amor

como o meu por ti

como o teu por mim

neste elo

eterno e perfeito.

espero

que um dia

esta espera sem fim

me ensine a esperar

pelo momento

em que não mais esperarei

por ti

nov2022

ser mãe

ser mãe é amor

um amor diferente

que não se explica

justifica ou entende

um amor

explosivo

pleno

dilacerante

que nos rasga o corpo

para todo o sempre

ser mãe é ser vida

mesmo após o fim

é sermos quem somos

e termos o pulso

fora de nós

respirarmos o ar

com o peito do outro

doer-nos mais fundo

as mágoas alheias

e sermos felizes só porque sorri

ser mãe é dor

de o saber partir

todos os dias

um pouco mais

para fora de mim

para perto de si

ser mãe é escolher

nunca mais ser só eu

e ter o ventre ligado

para sempre

ao sangue

que pulsa no corpo que é teu

ser mãe é memória

fora da mente

é o primeiro cheiro

entranhado

consolo

para sempre

ser mãe é ser eu

só para seres tu

lutar, chorar e sofrer

sorrir, brincar e crescer

é ser pequenina

e nada saber

do que todos dizem que deve ser

ser mãe

é caminhar

sempre a aprender

sempre a tentar

e a reerguer

mesmo com medo de falhar

mas não desistir

e continuar

e prosseguir

para que um dia

mesmo sem mim

possas vir a ser

a melhor e mais bela

versão de ti

uma caminhada incrível

Nó na garganta

Isolamento e confinamento – COVID-19 , Março 2020

Não tenho conseguido escrever.

Tenho uma espécie de nó na garganta. Daqueles que atam quando ficamos a remoer um assunto, a organizá-lo por dentro até que rebente em palavras.

Ainda não desatei o nó… acho eu.

Fiquei em casa, como convém. Para remoer mais. Ou para me acalmar mais.

Tenho sido invadida por uma estranheza crescente. Não será só minha, certamente.

Estranho o mundo, e o silêncio. Sinto as ausências e as distâncias. Vivo o medo.

Desculpem se não canto o hino à janela, ou bato palmas aos médicos, ou espalho correntes e desafios pelas redes fora. É como digo… acho que ainda estou na fase de dar o nó, e desfazê-lo requer calma e recolhimento. Pelo menos para mim.

Acho que há momentos em que também sinto essa união, essa ligação a todos – de que todos falam – ao mesmo tempo em que nos afastamos dos nossos.

Mas não sei… não sei se tenho fé que durem estes ensinamentos entre os homens.

Posso falar do que ganhei talvez, antes das perdas.

Ganhei tempo. Para descansar, ler, estar com o meu filho, ver filmes, dormir, cozinhar e tantas outras coisas que gosto de fazer por casa. Ganhei os cantos dos pássaros, que andam felizes felizes. Nunca se ouviu tantos pássaros na minha varanda como nesta Primavera! Saiu-lhes a lotaria neste mês de Março.

Ganhamos todos os canais de Veneza novamente translúcidos e cheios de peixes. Que coisa incrível deverá ser! E as ruas e avenidas desertas. Paris deserta, que coisa mágica de se ver! Como dizia o meu homem um dia destes, só em filmes, e pago bem caro pela produção. Pagava eu para caminhar por lá, sozinha!

Ganhamos um planeta com a cabeça de fora a aproveitar para respirar um ar mais puro. Desta vez a Primavera reivindicou a nossa ausência e fez-se senhora e dona dos campos e das cidades.

Ganhamos os homens todos, por todo o mundo, juntos numa mesma causa. Trancados em casa, pelo mundo fora juntos no medo, é certo, mas juntos. Quantas vezes terá isto sucedido? E ganhamos governos a porem vidas acima da economia – forçosa e temporariamente, é claro, mas ainda assim…

Mas o que perdemos… o que está hipotecado é que me entope a garganta.

De repente, temos que ficar isolados. Não podemos estar com as pessoas queridas, não podemos abraçar os nossos pais, beijar os nossos filhos, partilhar a cama com os amantes, estar com os nossos pares. Separam-se famílias inteiras para sobreviver e as (tantas vezes malditas) tecnologias são a tábua de salvação destes amores. Uma aldeia global, como lhe chamamos, em que o longe se faz perto no ecrã… e onde o perto pode ser tão longe! A casa da mãe que é já ali e onde não convém passar do portão… os amigos que vivem ao virar da rua e com quem não se pode ir partilhar um café… o amor, o meu, como o teu ou o dele, que teve que sair de casa por força do trabalho ou da prevenção e dorme sob tectos emprestados e estranhos…

Não tocar – distância mínima recomendada

Perdemos a liberdade do ar livre, do correr, do brincar no jardim, das idas à praia, das viagens.

Estamos obrigados a reinventar a criatividade entre 4 paredes. E somos incríveis a adaptar-nos, porque o fazemos. E bem. Fazemos exercício, brincamos e criamos em espaços confinados e pequenos.

Somos naturalmente gregários, comunitários, sociais… mas esquecemo-nos disso às vezes porque nos sentimos importantes, gigantes, poderosos. E de repente um bichinho minúsculo e invisível espalha o caos, isola-nos e obriga-nos a suspender compromissos, prioridades, negócios e a olhar para o lado e perceber que afinal temos vizinhos. E promove encontros, mesmo separando-nos uns dos outros.

Perdemos o adeus aos mais queridos, que morrem sozinhos entre paredes brancas de hospital e são incinerados como agentes perigosos de contaminação do mundo.  Eles que deram vida ao mundo que temos hoje! Irónico, não é?

Enchemo-nos de álcool e sabão, esfregamos vezes sem conta as mãos e olhamos com desconfiança para o mundo em nosso redor.

De repente não somos tão grandes assim!

 De repente lembraram-nos que somos matéria, tão orgânica, natural e vulnerável, como qualquer outro ser vivo.

E estamos todos a aprender.

Gostava que fosse uma aprendizagem duradoura, purificadora, que trouxesse um homem novo. Mais justo, mais consciente, mais tolerante, que cuidasse dos outros e da (sua) natureza. Um homem que colocasse o amor, a paz e a vida sempre em primeiro lugar.

Mas não sei, tenho um nó na garganta… porque não sei se tenho fé que durem estes ensinamentos entre os homens.

Morrer e ficar

As pessoas morrem.
As pobres, as ricas,
os ninguéns
e os que mudaram o mundo.
Todos.
E não consigo entender como.
Como sucede isso de nos desligarmos?
Todo este mundo que somos,
tão grande, complexo, importante…
Todas estas memórias, afetos,
sonhos e projetos?
Desliga-se tudo isto,
como se nunca tivesse sido?
E para onde vai?
Acredito, aprendi a acreditar,
que para lado nenhum.
Simplesmente puf,
desaparece quem somos
quem fomos
quem ainda queríamos ser.
Depois parece-me
que pouco ou nada importará
se ainda se lembram de nós
se ainda falam, se sentem,
se ainda nos amam
Ou se sofrem por nós.
Nada mudará para quem foi,
nada fará voltar
quem já não é ninguém.
Mas se não se lembrar quem morreu
se não faltar
se não doer
a ausência do seu eu,
é porque na verdade
pouco importou
que cá estivesse
mesmo enquanto viveu.
Antes de ser nada
quero ser tudo ainda.
amar, sorrir, abraçar
correr, dançar…
ser um pouco louca em cada dia.
Quero mimimi
E quero nhónhónhó
Quero dormitar, anhar,
Quero os amigos
E com eles quero forró.
Saborear os meus bocadinhos preferidos.
Quero o meu filho
quero o meu homem
e os meus pais sempre comigo.
Quero o quentinho
a lareira e o meu ninho,
e o mundo inteiro ainda palmilhar.
Jardins, montanhas, palcos...
muito ainda quero pisar.
Quero o meu público e os seus aplausos.
Quero que lembrem
Que fui gente
Que pensei, que ri, que senti
Que chorei.
Acima de tudo que não esqueçam
que um dia também estive por aqui.

Sorte a minha, sorte a tua.

E se a vida, afinal, é só sorte?

Trevo de 4 folhas
Extremamente raro, a probabilidade de encontrar um é de 1 para cada 10 mil trevos.

Sorte a minha…

por aquele camião no meio da estrada de que consegui desviar-me mesmo no último instante,

aquela queda em que parei a centímetros do precipício,

a infeção hospitalar a que escapei quando os outros não,

o pedaço de comida que me arrancaram de dentro com uma pancada forte nas costas,

o tiro perdido que atingiu os que caminhavam na outra calçada,

a loucura a que escapei apesar de todo o desgosto,

o cancro que o meu vizinho apanhou, mas não eu,

a fome e as derrocadas que dizimam milhões, mas longe daqui,

o trabalho de última hora que me fez cancelar o voo no avião que caiu,

o comboio que descarrilou na linha 3, e eu na 2,

a ponte que desabou mesmo à minha frente,

o atentado na praça onde passeei ontem à noite,

o AVC, não meu, mas do meu colega de gabinete, e

Sorte a tua…

Que consegues mexer-te dentro do teu corpo.

Que continuas a fazer uso pleno e ordenado do teu pensamento, da tua memória…

continuas a saber sequer a pessoa que és,

que fazes uso dos teus braços e das tuas mãos e com eles podes tocar e abraçar,

e tens pernas que ainda se movem e te fazem avançar os pés.

Que comes, e ainda sabes a que sabem os sabores.

Sentes o ar fresco na pele e percorres os campos com os teus olhos.

Que és afortunado com dias e dias e dias, sem dor,

Tens uma boa cabeça, que não é mera soma de retalhos

e tens todo um corpo em equilíbrio e harmonia.

A árvore da vida
representa a ligação entre a terra e o sol, é símbolo de vida eterna, longevidade, sorte e saúde. Usado como sinal de encorajamento para seguir em frente, em direção à luz nos momentos difíceis.

Sorte a nossa,

que percorremos mil ruas e montanhas e rios, de mãos dadas, tantas vezes,

e nos beijámos, sem vergonha, sempre que nos apeteceu.

Sonhámos e ressonhámos as coisas futuras, sem nunca perdermos a chance incrível de vivermos cada dia;

tivemos filhos, e amigos, e família, e os juntámos tantas vezes quantas queria

em volta de uma festa, uma mesa, um café, ou um jardim para partilharmos a mesma alegria.

E corremos, e nadámos, pulámos e voámos que nem garotos em bicicletas, e baloiços;

viajámos e perdemos de vista a beleza, sem pressa para nada nem horas marcadas à frente.

Tivemos frio, e calor, e sentimos o rosto cortado pelo sal da água e pelo vento,

e o corpo rosado e quente e corado pelas tardes de sol.

Sorte a nossa que já fomos tanto e isso ficou para sempre.

Libélula: animal que passa por diversas mutações e transformações ao longo da sua curta vida, é símbolo de sorte, renovação e de luz.

Pena minha, agora,

que queria dizer que te amo, e não consigo que os meus lábios se mexam,

e queria segurar os teus dedos bem apertados nos meus…

Que só queria sorrir,

e falar e sentir.

Sorte a minha, sorte a tua,

que mesmo agora, mesmo assim,

tão longe, e tão presa dentro de mim,

por ter sido tão grande, generosa e presente,

é o amor nos olhares o que mais nos apazigua.

E prometo, meu amor,

meus amores,

que essa luz há-de manter-me forte até ao fim.

para ti Bela.

Dizer-te adeus

Dizer-te adeus é ficar em suspenso.

Tudo.

É não saber de repente o que sou ou quem sou. O que fazer ou como abrir os olhos sozinha depois da partida.

Mas é prosseguir, viver (ainda), e redescobrir quem poderei chegar a ser.

Não é abandono esta despedida.

Porque te trago colado a mim, em cada amanhã que me espera de hoje em diante. Também sou quem és e quem de mim fizeste, também sou as conquistas lado a lado, os erros e os enganos que juntos arriscámos e pagámos, os sorrisos e os caminhos que me ensinaste a rasgar, os abraços e os soluços, os audíveis e os surdos, que em mim provocaste.

Mas dizer-te adeus é acenar a mim própria que sim.

Quando o solo que pisamos já só parece pântano, quando todos os dias se tornaram um repetir constante de nada, de teimosia, de rostos fechados e azia… quando já nem há culpa, ou nem interessa se um dia houve, quando já só te falta o ar e as palavras secaram por falta de vontade de nelas pensar… não podes continuar.

Dizer-te adeus é parar. Para voltar à linha da partida.

Ainda que este início jamais possa ser inteiramente novo, quero ainda assim um início. Quero ainda silêncio, e calmaria. Quero ainda adormecer com a promessa de que amanhã ainda pode haver alegria, e que estou viva e cheia de ânsia de correr pelos jardins do mundo.

Quero a promessa das cores, dos caminhos arco-íris, dos trilhos e dos rios, dos pássaros e das borboletas que enfeitam os dias e as flores.

Quero ainda o amor.

Aquele em que se perdem os olhares, e onde não se travam guerras inúteis e despropositadas, onde não se erguem armas de pretextos inventados, e sem motivos reais. Quero baixar os braços, e pousar num colo seguro, que me faça fechar os olhos tranquila e sonhar bem alto com lugares mágicos.

Dizer-te adeus é chorar.

Porque era só o teu colo que queria, ainda. Não o de hoje, mas o de outros dias. Dos dias em que juntos desenhámos a carvão o nosso para sempre, e nele pudemos acreditar. Dos dias em que, passo a passo, bloco a bloco, fomos erguendo o nosso castelo, que fizemos fortaleza, e sonhámos com filhos soldados que a nosso lado travariam a guerra da sobrevivência até ao fim da batalha. Por isso, dizer-te adeus é lamentar… lamentar tanto!

Mas porque ficar é cobardia…

é suster para sempre uma espécie de grito, um suspiro em apneia,

é adormecer e refugiar-me num faz de conta que há muito perdeu a magia…

Porque continuar é mentir,

mentir-te a ti “que ainda cá estou”,

mentir-me a mim “que ainda tenho lugar dentro de ti”,

mentir ao mundo “que fizemos os soldados fortes e nos erguemos em par como guerreiros que persistem até à morte”…

Dizer-te adeus é ser melhor.

Partir é ser real mesmo que só, é querer a verdade, mesmo que dor, e é, ainda que não vejas ou entendas, guardar-te no peito pelo tanto que foste, pelo tanto que ensinaste ao meu coração sobre o amor.

Islândia
Agosto 2018
Fotos de C. Hugo Duarte

Para Íris, com amor

Um dia ouvi, pelas palavras de Anaxágoras, que toda a semente carrega em si tudo o que o seu ser há-de vir a ser. Que as sementes são eternas, imutáveis, e sábias e que há tantas sementes quantas coisas existem, o que faz de cada uma absolutamente única e mágica. São a centelha, fulgurosa, ainda que fugaz, do que há-de chegar.

Um dia descobri que essa centelha – a que é humana, pelo menos – já é até mesmo embrião do amor que no futuro espalhará dentro dos outros -, mesmo que nem todos o possam reconhecer ainda ou antecipar. Uma vez germinada a semente, nunca mais o solo ficará igual, porque fica aquela luz de presença a brilhar por ali, uma espécie de eco ao longo dos tempos, permanente. Mesmo que falhe o seu crescimento, mesmo que a força que traz não seja suficiente, aquilo que ela toca, é tocado por ela, para sempre. E há toques que se colam a nós e nunca mais nos largam.

Assim são os filhos que não vieram. As sementes que pousaram em ventres que, por muito que até fossem pêra com forma de coração, por muito que quisessem, se esforçassem, ou até crescessem, não conseguiram fazer com que vingassem.

Sempre achei piada a este termo: vingassem. Como se sobreviver, existir apenas até, fosse uma qualquer vingança planeada contra o azar ou o infortúnio, que faz de nós guerreiros, gladiadores ou She-Ras na arena da vida.

Não, viver não pode ser só coincidência. Magoa demais que assim seja…

Ou afinal, talvez possa. E daí surja a tal vingança: do medo ou raiva por a sorte nos preterir, nos esquecer e nos calhar a nós a carta malfadada que ninguém quer.

Os filhos são sementes que espalhamos pelo mundo.

E as que não chegam a enfrentá-lo, ao mundo, não são menos sementes por isso. E podem chegar a ser enormes e poderosos, esses filhos, pelo menos para a dona do ventre que para eles foi tudo.

Um dia, olharam-me nos olhos, turvos, e disseram-me, com um olhar espelho de dor: “assim que sabemos, nasce um amorzinho dentro de nós, não é?”. Fiquei muda. E nunca mais deixei de sentir esta frase cá dentro. A pessoa nem era ninguém, ou quase ninguém, já nem se lembrará de mim, da frase, ou da dor, mas a frase trazia o poder de uma empatia que não sentiria em mais nenhuma.

Essa semente apresenta-se ao coração, primeiro que à cabeça. Há o brilho da centelha a percorrer-nos as veias, a espalhar a intuição, que o pensamento nem reconhece, mas que vem de um amor anónimo que se sente.

Assim que sabemos, ou mesmo antes de sabermos… o amor. E não é só amor à promessa, da antecipação e da ânsia do que sucederá depois. É já uma entrega, absoluta e avassaladora a cada instante partilhado a dois. É amar o que já é, mesmo quando parece ainda nada ser, amar sem ver, sem ouvir,sem receber. Amor a darmo-nos, todas, a tempo inteiro. Despojarmo-nos do nosso corpo, entregá-lo à semente e guardar por toda a vida a alegria dessa entrega.

É um amor condenado à dor, mas nunca a morrer. Quem teve um filho que não chegou a vir, carrega-o dentro de si até ao fim.

Mesmo que a semente se vá, já deixou a sua luz a brilhar cá dentro. Nunca mais ninguém a verá, nunca ninguém saberá que nada a levou ou levará do ventre de quem quis ser a mãe e trazê-la ao mundo.

Mesmo que o ventre se vá, a centelha continuará a faiscar, a prometer ser e, em a mãe deixando, a viver.

Tenho filhos destes dentro de mim. Promessas que fui fazendo ao mundo, a mim, e aos outros. Amorzinhos pequeninos, feitos apenas de sensações que me trespassaram de dentro para fora, trajetos futuros que foram só imaginados e perduraram. E tenho um filho dos outros, um rei, um mágico a quem ensinei a magia do querer, a quem repito que se imaginarmos muito, com muita força e vontade, as coisas que sonhamos existem, e chegam a ser.

E é assim mesmo… se imaginarmos muito as sementes resistem.

Pomos-lhes fitinhas no cabelo pela manhã, colamo-las ao nosso peito e levamo-las a passear. Partilhamos o primeiro sorriso, o primeiro dentinho, e ouvimos mamã. Afundamos os nossos olhos nos delas e agarramos com uma mão os seus pezinhos inteiros. E entrelaçamos os seus dedos nos dedos dos filhos que vingaram e são, e explode-nos o peito por dentro porque a centelha vira fogo, chama… lareira que aquece, conforta e nos prova que amor é amor e, que em sendo verdadeiro, é para sempre.

E depois, tomamo-las no colo, cantamos-lhes ao ouvido baixinho e voltam a adormecer. Até um dia, num qualquer dia, um sonho as volte a trazer e lhes voltemos a entregar o coração por um momento. Por aquela paixão pequenina, com tanto de luz como de dor, que ficou como um eco baixinho.

À minha até dou nome às vezes e escrevo-lhe cartas sem fim, que começam e terminam, num loop de emoção: Para a Íris… para a minha Íris, com amor.

Uma carta de amor

Hoje queria escrever-te uma carta de amor.

Achei que não mais voltaria a escrever cartas de amor.

Mas tu devolveste-me as palavras do coração e hoje queria pegar num papel e enfeitá-lo com as cores do sol que trouxeste para os meus dias.

Pegar num lápis e deixar que todas as borboletas que vivem dentro de mim guiassem a minha mão. Horas a fio. Não fazer mais nada a não ser uma imensa ode a ti, e a mim, e ao que tanto desejo e anseio para nós dois.

Descrever-te o sonho lindo que tive, que tenho, a cada olhar trocado entre nós. Um sonho junto ao rio… Pintado de laranja sol ou talvez azul noturno, e embalado ao ritmo do silêncio em que dança o coração.

Islândia 2018
foto de C. Hugo Duarte

Queria escrever-te uma carta em que te conseguisse dizer tudo o que povoa o meu olhar mesmo quando não consigo falar.

Às vezes bloqueia-se a saída das palavras de amor que tenho guardadas para ti. Sim, às vezes acontece. Não porque não as queira dizer, mas é que há momentos em que me sinto a caminhar sobre um muro muito estreitinho, e estranho e fico cheia de medo de cair. Porque nada me garante que sejas mesmo como te construo dentro de mim, ou que também esperes que eu seja (e te alegres) apenas e exatamente com aquilo que sou. Pode ser mágica esta descoberta dois a dois, mas dilacerante se nos enganarmos, não é?

Queria manter-me sempre lúcida, ou inebriada de todo, e conseguir nunca deixar o tempo corromper o que sinto por ti. Queria que o mesmo sucedesse contigo.

Sei que não será assim. Porque nunca é. Nunca se consegue que seja. Mas então, quero que nunca cessem de sair as palavras de amor, ou pelo menos com amor de dentro de nós.

Que se escrevam as cartas na forma como vivemos os dias juntos. Que vivamos os dias juntos. Porque me enches de vida sempre que pousas os olhos em mim e preciso deles para respirar.

Essa é a parte mais bonita do meu sonho: aquela em que me dás a mão, me beijas levezinho e me sussurras… respira!

O ar fica mais puro e leve, as nuvens dissipam-se, os gritos silenciam-se e a ansiedade desaparece. E respiro.

Gostava de só ser boa para ti. Sempre.

Mas não conseguirei. Não consigo. Não sempre. Porque nunca seremos iguais, às vezes nem parecidos, e o bem nunca será exatamente igual para cada um.

Mas gostava então que gostasses sempre de me ter ao teu lado. Que me mantivesses aí, que te mantivesses aqui, mesmo quando não estou, mesmo quando não estás. De te aceitar e que me aceitasses, sempre. Como somos. Esta é uma tarefa difícil, eu sei, mas no meu sonho, continuaremos a tentar. E não perderemos a força. E conseguiremos.

Um dia as borboletas voarão. Inevitavelmente para fora de mim. E de ti.

Mas no meu sonho não fogem para longe. E colamo-las talvez então nas paredes. Nas nossas. Da casa, ou do quarto, desse sítio inventado junto ao rio. Talvez.

E criaremos mais e novas borboletas num qualquer atelier aquecido pelo sol, ou pela lareira, para que encham todos os espaços, todas as paredes, todos os dias. E com as borboletas fora de nós, mas com as borboletas entre nós, forjadas por nós, a decorar a nossa vida, construiremos e reinventaremos um amor maior, feito de partilha e aconchego, de carinho e confiança, de suporte e apoio, de ajuda e segurança e, claro, ainda, de beijos, muitos, e abraços sem espaços vazios, corpos colados e olhos pousados nos olhos, longamente, para sempre.

Hoje quis escrever-te uma carta de amor sem fim.

Dizer que te amo, que te quero aqui a cada momento, e partilhar contigo o sonho mais lindo que trago dentro de mim.


Islândia 2018
foto de C. Hugo Duarte

21 dezembro 2016 (revisão)

O meu primeiro dentinho caiu

Quando o primeiro destes cai, há algo que se transforma para sempre.

Há algo que se perde no seu sorriso e que se perde dentro de nós mães, para sempre. Perdem-se as noites mal dormidas, mas também o cheiro inconfundível do alto da cabeça do nosso recém nascido; perde-se o embalar até cairmos de exaustão, mas também de êxtase e pura felicidade, lado a lado; perde-se a sensação de tudo podermos segurar com o nosso colo, pura e simplesmente porque ele já não nos cabe no colo; perde-se a sensação de que já não temos tempo e espaço para nós, mas perde-se a profunda sensação de que seremos apenas um do outro para sempre.

Um dia, quando o meu filho tinha talvez uns 10 meses, uma amiga disse-me: Não me digas que também vais ser daquelas que aos 3 anos ainda chamam o filho de bebé! Sabe quem é mãe que não. Chamar-lhe-emos (cá dentro) bebé até morrermos. Porque a alegria de o termos nos braços, a magia de sermos o seu alimento, o seu ar, o seu mais que tudo, levamo-la no peito por toda a nossa vida.

Nasci no dia em que ele nasceu, e é muito difícil permitir que conquiste o mundo e que este o leve do meu regaço. O risco é tão grande, o medo é gigante! E por isso, só por isso, continuarei a chamar-lhe bebé (baixinho, para que não me ouça e quase morra de vergonha, claro) por todos os dias da minha vida. E o meu colo terá o tamanho que o seu conforto exigir, e o meu amor estará disponível para o alimentar sempre que precisar.

Reservarei sempre, na caixinha dos nossos segredos, a nossa canção de embalar e ajudá-lo-ei a sonhar bem alto, e a conquistar os seus mais lindos sonhos.

Parabéns homenzinho, pelo primeiro dentinho.

31 março 2014

Se não fosses tu

(ou ode ao meu grande amor pequenino)

Se não fosses tu,
hoje dormiria até ao meio dia, e todos os domingos e sábados do ano,
mas não teria recuperado as manhãs da minha infância, a preguiçar na cama entre papas e bonecos animados.

Se não fosses tu,
este continuaria a ser o dia mais importante do ano…
mas não saberia que é possível haver dias mais importantes dos que o do nosso próprio nascimento.

Se não fosses tu,
não me sentiria tão cansada, continuaria a saber o que é deitar e só acordar de manhã e poderia não fazer nada, quando me apetecesse…
mas não conheceria os meus próprios limites, as minhas reservas de energia, não aproveitaria cada instante dos dias, desde que o sol nasce até que se põe e não teria o prazer de ser acordada a meio da noite, várias vezes por noite, com abraços e beijinhos.

Se não fosses tu,
eu via os noticiários e não me sentiria envergonhada quando não sei de cor o nome de todos os ministros e conseguiria discutir as questões mais profundas da economia e da crise,
mas não dançaria, ao fim do dia, ao som das músicas dos Caricas e da Xana TocToc no meio da sala e já nem me lembraria que existe um jogo chamado “1,2,3 Macaquinho de Chinês”.

Se não fosses tu,
eu estava a par dos filmes que passam no cinema e não perderia tantos espetáculos de teatro…
mas não saberia que mesmo na sucata encontramos corações de ouro como o do Mate (nem saberia quem ele é!), e que no imaginário dos meninos há Gormittis guardiões da Natureza.

Se não fosses tu,
lia mais jornais e revistas…
mas provavelmente continuaria a não saber o que foi um Diplodocus.

Se não fosses tu,
eu e o papá jantávamos fora pelo menos 2 vezes por mês e íamos tomar café à rua todos os dias…
mas desconheceríamos a força de um amor muito maior do que a maior das paixões entre um homem e uma mulher.

Se não fosses tu,
faríamos mais fins de semana culturais, desportivos e recreativos…
mas não tínhamos voltado a jogar à macaca no parque infantil, a dar pão aos patos no jardim da cidade, ou andar de bicicleta em família ao final da tarde.

Se não fosses tu,
desfrutava um belo livro à noite antes de dormir…
mas não teria a voz suave de uma criança a dizer-me ao ouvido que me ama até à lua e da lua até aqui, não contaria e receberia histórias de encantar, já às escuras e ao som de música de embalar… todas as noites.

Se não fosses tu,
a praia servia para ler, dormir e relaxar…
mas não teria castelos fantásticos cheios de fadas e monstros e heróis imaginários.

Se não fosses tu,
via filmes do princípio ao fim enroscada no sofá…
mas não ficaria enternecida com o entrançar de uns dedos pequeninos nos meus, à lareira, enquanto temos uma aula sobre ciência com o SID.

Se não fosses tu,
não teria que me levantar mesmo quando estou doente…
mas não saberia que existem dores que nos doem muito mais do que as nossas (as tuas…).

Se não fosses tu, eu sairia mais à noite e dançava até de madrugada…
mas não seria capaz de sorrir, mesmo quando me sinto mal, ou triste ou desalentada.

Se não fosses tu,
eu faria mais teatro…
mas perderia as festas dos fantoches privadas no teu quarto.

Se não fosses tu,
a árvore de natal seria chique e sóbria, em azul e prateado talvez…
mas não seria mágica e não se transformaria todos os dias numa coisa diferente, de cada vez que alteras a posição dos enfeites.

Se não fosses tu,
Dezembro passaria a correr, como todos os outros meses do ano…
E não saberia a chocolate logo de manhã, quando perguntas pelo dia a abrir no calendário.

Se não fosses tu,
o Pai Natal traria prendas maiores para o pai e para a mãe…
mas não faria visitas de noite ao longo do mês, não deixava gomas, nem rebuçados nas nossas botas, e o Natal seria também ele sóbrio, e sério, e….. aborrecido.

Se não fosses tu,
Eu seria toda para mim…
Mas não saberia como nos sentimos verdadeiramente importantes e especiais,
quando somos o mundo de alguém.

Se não fosses tu…
Eu teria tanto tempo,
Eu faria tanta coisa,
Eu seria tão diferente,
Mas eu nunca saberia como é ser feliz,
Se não fosses tu.


Ecopista do Vale do Vouga – Março 2017