Fim do mundo II -(ou visões de uma Pandemia)

saudades do mundo (pixels free photos)

o mundo acabou

lá fora

já não há crianças

os velhos morreram

ou ficam à espera

perdidos

dos filhos

sem esperança

caídos na estrada

os homens lutam

por se sentirem vivos

gritam na rua

por motivo nenhum

sem rumo

sem causa

ou porto seguro

dos sonhos só névoa

esfumada entre os dedos

as noites sofridas

de olhos abertos

atentos, despertos

vazios

sangrentos

corpos

sós

o nada pela frente

sem futuro

nem caminho

sem amanhã que alente

sem nós

Paris deserta em tempo de Pandemia (pixels free photos)

Evasão

Sinto um desejo crescente

De me evadir daqui

Não de fugir

Porque não sei de quê

Não de partir

Porque não sei para onde

Apenas de abandonar

Tudo o que não sei dizer

Tudo o que sempre vivi

E me obriga a correr

Até me faltar o ar

Por dias e dias sem fim

Preciso de outro lugar

Que seja sítio nenhum

Que fique distante, bem longe

Quero poder morar

Numa paisagem só minha

Ao som do silêncio do mar

ou do deslizar de um rio

E deitar, dormir, acordar

coroada de flores

qual rainha

sozinha e feliz e tranquila

e nunca, nunca mais voltar.

Fim do mundo

It’s the end of the world as we know it

no fim do mundo

quase não há gente

os que sobram

não se beijam

não se abraçam, não se tocam

não se amam

já não sabem

não há crianças, nem futuro

ou destino

no fim do mundo

não há casa

nem calor, nem frio

não há sono

nem retiro

no fim do mundo

não há dinheiro

nem alimento

para os pobres

não há ricos

e nada é de ninguém

não há posse

nem dádiva

nem rei

no fim do mundo

ninguém fala

nem ri

nem chora

ninguém sente

ninguém é

ou será

ou se lembra de ter sido

somos sombras

sem memória

meros espectros esquecidos

no fim do mundo

não há melhor

nem pior

nem desigual

todos anseiam apenas

por mais um pouco de ar

o instante seguinte

e cada um luta apenas

por cada qual

no fim do mundo

por entre o vento

rastejamos sós

sobre a terra

gigante, alegre

de luz, de vida e cor

mas já não para nós

Nó na garganta

Isolamento e confinamento – COVID-19 , Março 2020

Não tenho conseguido escrever.

Tenho uma espécie de nó na garganta. Daqueles que atam quando ficamos a remoer um assunto, a organizá-lo por dentro até que rebente em palavras.

Ainda não desatei o nó… acho eu.

Fiquei em casa, como convém. Para remoer mais. Ou para me acalmar mais.

Tenho sido invadida por uma estranheza crescente. Não será só minha, certamente.

Estranho o mundo, e o silêncio. Sinto as ausências e as distâncias. Vivo o medo.

Desculpem se não canto o hino à janela, ou bato palmas aos médicos, ou espalho correntes e desafios pelas redes fora. É como digo… acho que ainda estou na fase de dar o nó, e desfazê-lo requer calma e recolhimento. Pelo menos para mim.

Acho que há momentos em que também sinto essa união, essa ligação a todos – de que todos falam – ao mesmo tempo em que nos afastamos dos nossos.

Mas não sei… não sei se tenho fé que durem estes ensinamentos entre os homens.

Posso falar do que ganhei talvez, antes das perdas.

Ganhei tempo. Para descansar, ler, estar com o meu filho, ver filmes, dormir, cozinhar e tantas outras coisas que gosto de fazer por casa. Ganhei os cantos dos pássaros, que andam felizes felizes. Nunca se ouviu tantos pássaros na minha varanda como nesta Primavera! Saiu-lhes a lotaria neste mês de Março.

Ganhamos todos os canais de Veneza novamente translúcidos e cheios de peixes. Que coisa incrível deverá ser! E as ruas e avenidas desertas. Paris deserta, que coisa mágica de se ver! Como dizia o meu homem um dia destes, só em filmes, e pago bem caro pela produção. Pagava eu para caminhar por lá, sozinha!

Ganhamos um planeta com a cabeça de fora a aproveitar para respirar um ar mais puro. Desta vez a Primavera reivindicou a nossa ausência e fez-se senhora e dona dos campos e das cidades.

Ganhamos os homens todos, por todo o mundo, juntos numa mesma causa. Trancados em casa, pelo mundo fora juntos no medo, é certo, mas juntos. Quantas vezes terá isto sucedido? E ganhamos governos a porem vidas acima da economia – forçosa e temporariamente, é claro, mas ainda assim…

Mas o que perdemos… o que está hipotecado é que me entope a garganta.

De repente, temos que ficar isolados. Não podemos estar com as pessoas queridas, não podemos abraçar os nossos pais, beijar os nossos filhos, partilhar a cama com os amantes, estar com os nossos pares. Separam-se famílias inteiras para sobreviver e as (tantas vezes malditas) tecnologias são a tábua de salvação destes amores. Uma aldeia global, como lhe chamamos, em que o longe se faz perto no ecrã… e onde o perto pode ser tão longe! A casa da mãe que é já ali e onde não convém passar do portão… os amigos que vivem ao virar da rua e com quem não se pode ir partilhar um café… o amor, o meu, como o teu ou o dele, que teve que sair de casa por força do trabalho ou da prevenção e dorme sob tectos emprestados e estranhos…

Não tocar – distância mínima recomendada

Perdemos a liberdade do ar livre, do correr, do brincar no jardim, das idas à praia, das viagens.

Estamos obrigados a reinventar a criatividade entre 4 paredes. E somos incríveis a adaptar-nos, porque o fazemos. E bem. Fazemos exercício, brincamos e criamos em espaços confinados e pequenos.

Somos naturalmente gregários, comunitários, sociais… mas esquecemo-nos disso às vezes porque nos sentimos importantes, gigantes, poderosos. E de repente um bichinho minúsculo e invisível espalha o caos, isola-nos e obriga-nos a suspender compromissos, prioridades, negócios e a olhar para o lado e perceber que afinal temos vizinhos. E promove encontros, mesmo separando-nos uns dos outros.

Perdemos o adeus aos mais queridos, que morrem sozinhos entre paredes brancas de hospital e são incinerados como agentes perigosos de contaminação do mundo.  Eles que deram vida ao mundo que temos hoje! Irónico, não é?

Enchemo-nos de álcool e sabão, esfregamos vezes sem conta as mãos e olhamos com desconfiança para o mundo em nosso redor.

De repente não somos tão grandes assim!

 De repente lembraram-nos que somos matéria, tão orgânica, natural e vulnerável, como qualquer outro ser vivo.

E estamos todos a aprender.

Gostava que fosse uma aprendizagem duradoura, purificadora, que trouxesse um homem novo. Mais justo, mais consciente, mais tolerante, que cuidasse dos outros e da (sua) natureza. Um homem que colocasse o amor, a paz e a vida sempre em primeiro lugar.

Mas não sei, tenho um nó na garganta… porque não sei se tenho fé que durem estes ensinamentos entre os homens.